“Americanismo” e “pressupostos do fascismo” no Brasil de Bolsonaro

Fellipe Bernardino é mestrando em Ciência Política na USP.

A eleição de Jair Bolsonaro em 2018, contrastando com as tendências centrípetas da política brasileira desde a década de 1990, colocou o país na linha de frente do tsunami de extrema direita que sacode o mundo pós crise financeira de 2008. A retórica beligerante do ex-capitão, que chama seus adversários de “bandidos”, ofende grupos sociais historicamente marginalizados e debocha até dos doentes de Covid-19, faz parecer que uma cisão o separa, ao lado de seus seguidores, do restante da direita brasileira. Mas, contrariando essa aparência, recorremos aqui a formulações de Gramsci (2015) e Adorno (2020) para defender o ponto de vista de que Bolsonaro representa um movimento com vetores, simultaneamente, pelo alto e pelas bases. Pretendemos, assim, jogar luz sobre a particularidade brasileira de – também no contexto pós-2008 – a extrema direita implementar políticas de neutralização dos meios para intervenções do Estado na economia, o que a distingue de suas congêneres ao redor do mundo. Iniciadas pelo governo de centro-direita de Michel Temer (2016-2018), as políticas de retirada da capacidade de intervenção estatal na economia têm sido desde então intensificadas pelo presidente Jair Bolsonaro.

            Como observado por Streeck (2015, 2019), a inconformidade com a ausência de meios para fazer valer a vontade das maiorias na política econômica, conforme a exigência neoliberal, é parte das causas para a ascensão da extrema direita contemporânea. Escrevendo sobre a Europa e os Estados Unidos, Streeck (2019) localiza a emergência da extrema direita no contexto sócio-político surgido depois de 2008, quando o artifício de mascarar o conflito distributivo com riqueza fictícia (crédito) tornou-se indisponível. Ocorre que o neoliberalismo não pode ser compreendido isolado de suas duas irmãs: financeirização e globalização (STREECK, 2015). Para atender às exigências da primeira, os Estados precisam abrir mão de prerrogativas para o controle interno e externo dos capitais (CHESNAIS, 1996). Já a segunda irmã do neoliberalismo, a globalização, neutraliza a possibilidade de a democracia intervir na economia, ao proclamar a existência de um mercado mundial transcendente aos próprios Estados (ibid.).

Os efeitos dessa realidade nas sociedades contemporâneas são sensíveis. Se os “dependentes de salário” (STREECK, 2015) resolvem disputar eleições para se contraporem à acumulação desmedida do capital, a conquista do poder pela via eleitoral não significa dispor dos instrumentos necessários para fazer valer sua vontade. Ora, o neoliberalismo é fruto de uma indisposição burguesa de conviver com a assertividade de uma classe trabalhadora organizada que participava da política nos welfare states. A teoria crítica previa que essa assertividade culminaria numa crise de legitimação desencadeada pelo trabalho (pondo fim ao capitalismo), mas o capital foi mais rápido: a partir da década de 1970, passou a exigir que os Estados fossem legítimos apenas para si, excluindo, pouco a pouco, o trabalho da política. E, para ser legítimo frente ao capital, os Estados perderam uma parte do seu poder. Os meios de intervenção do Estado na economia são, afinal, um recurso da “luta de classes democrática” e do acirramento do conflito distributivo em benefício do trabalho (ibid). Quando, a partir de 2008, as consequências profundamente antidemocráticas do neoliberalismo ficaram nuas, os cidadãos quiseram esses meios de intervenção na economia de volta, mas para isso recorreram ao “populismo” – sobretudo, de extrema direita (STREECK, 2019).

O caso brasileiro é particular porque aqui a extrema direita se revelou uma radical defensora da retirada dos meios de intervenção do Estado na economia. Se as variáveis fiscal e monetária compõem os elementos mais importantes da política econômica de um país, no caso brasileiro ambas estão, ao mesmo tempo, protegidas das pressões populares. Isso teve início com a centro-direita, que chegou ao poder depois do golpe parlamentar de 2016, Michel Temer à frente, e foi completado por Jair Bolsonaro. Temer conseguiu, menos de um mês depois de assumir o governo, aprovar uma lei que por vinte anos promete limitar os gastos públicos à inflação do ano anterior. Já o ex-capitão blindou o Banco Central do controle democrático, aprovando uma lei de autonomia formal à autarquia. Em última instância, as políticas monetária e fiscal têm o condão de determinar o grau de emprego na economia – então, como não questionar a justiça de mandatos no Banco Central que não sejam coincidentes com eleições democráticas, e da proibição de aumentos nos gastos públicos por governos democraticamente eleitos?

O economista marxista Michael Kalecki (1943) havia desvendado, já nos primórdios do keynesianismo, o surpreendente motivo pelo qual os capitalistas se opõem a políticas de pleno emprego. A ausência de desemprego em uma economia permite aos trabalhadores uma segurança existencial que não é do interesse dos patrões. Os assalariados se tornam mais assertivos em sua postura no chão das fábricas, mas também na política. Acima de tudo, os capitalistas se incomodam com o pleno emprego porque, em uma situação assim, estão impedidos de realizar uma forma de chantagem para que sua vontade prevaleça – a possibilidade do desemprego é uma arma não só de um patrão individual, para manter o respeito de seus trabalhadores, mas do conjunto dos patrões enquanto classe (ibid.).

            Por que a extrema direita brasileira, ao contrário de seus equivalentes na Europa e nos Estados Unidos, leva adiante a retirada dos meios de intervenção do Estado na economia?  Os sinais invertidos do Brasil em relação aos países centrais são manifestação de uma realidade estrutural e não são de agora. O economista Fernando Rugitsky (2020) chama atenção para o fato de que, no pós-2008, enquanto houve um decaimento da qualidade de vida dos trabalhadores de países “geradores de demanda” – como os Estados Unidos e os da Europa, com exceção da Alemanha –, na América Latina foi diferente. Ainda que insuficiente, houve nos países do subcontinente, governados pelas esquerdas, uma elevação das condições de vida dos mais pobres, que se aproximaram das condições de reprodução normais de sua força de trabalho. Um caso ilustrativo entre as nações latino-americanas foi o Brasil, que, como observado por Singer (2012), obteve, com o lulismo, uma absorção pela classe trabalhadora das populações historicamente marginalizadas do subproletariado. Para Rugitsky (2020), a deferência de Bolsonaro ao neoliberalismo explica-se por sua chegada ao poder expressar uma disposição das classes dominantes de impedir a distribuição do poder e da riqueza, coisa que o lulismo soube fazer quando governou.  

            A aversão dos capitalistas brasileiros às políticas redistributivas do lulismo, identificada por Rugitsky (ibid.), relaciona-se com o primeiro vetor que descrevemos neste texto sobre o governo de extrema direita no Brasil, para cuja explicação recorremos a Gramsci (2015). Trata-se do elemento de continuidade da extrema direita brasileira em relação a outros segmentos conservadores, que também apostam na obstrução da participação do trabalho na política. Entretanto, nos afastamos aqui de interpretações sobre a atual conjuntura que se valem da noção gramsciana de “interregno” – momento ideal para a emergência de “sintomas mórbidos” – para nos concentrarmos na possibilidade de estar em curso uma política mais decidida das classes dominantes brasileiras em nome da acumulação capitalista. Por isso, sem desconsiderar o mérito das formulações sobre eventuais interregnos, que suscitam movimentos de extrema direita (“sintomas mórbidos”), visamos compreender a política do governo Bolsonaro com base no conceito de “americanismo”, desenvolvido por Gramsci (2015) em seu Caderno 22.

Foi ao lado do “fordismo” que o intelectual sardo apresentou o conceito de “americanismo” nos escritos de que aqui nos valemos. Entretanto, para esta discussão, nos interessa apreender apenas uma forma geral de organização da própria sociedade capitalista (e não especificamente da produção, como é o caso do fordismo). Essa forma só pode ser aquela que atende, de modo ideal, àquilo que mais interessa à classe dominante – a acumulação.

O americanismo consiste não apenas numa descrição da realidade dos Estados Unidos, mas também numa abstração daquelas condições de existência, que seria sem contingentes “supérfluos” na população. Em outras palavras, ao contrário dos países de tradição antiga, como os da Europa, nos Estados Unidos a sociedade como um todo estaria voltada à produção capitalista, de um modo espontaneamente racional. Podendo ser também uma abstração dessa realidade, o americanismo serve como uma formulação política voltada à criação dessas mesmas condições em outros países. Para isso, é necessário que o Estado seja liberal no sentido de uma sociedade civil caracterizada pela livre iniciativa e pelo individualismo econômico (GRAMSCI, 2015).

            Devemos chamar atenção para um aspecto determinante do americanismo, que já assinalamos: ele serve também para designar uma aspiração burguesa em nome da produção. Nesse sentido, estando no controle do Estado, os capitalistas lutam para implementar uma forma americanista de configuração da sociedade, em nome da acumulação de valor e conforme suas necessidades produtivas. Não se tratou de americanismo, portanto, a tentativa do governo Dilma Rousseff, por meio do “ensaio desenvolvimentista” (SINGER, 2018), de elevar as condições de vida da classe trabalhadora – proletários e subproletários – favorecendo a produção. O sentido do americanismo são trabalhadores que não se colocam como sujeitos na política: suas energias estão voltadas inteiramente à produção. O ensaio desenvolvimentista, além de ter sido liderado por um partido de trabalhadores, criou condições para um acirramento da luta de classes no Brasil, com um crescimento de greves, a partir do ano de 2012 até 2014, de 873 para 2050. Em 2014, chegou-se a 111 mil horas paradas (ibid.). Uma política americanista, por sua vez, exige que os trabalhadores não se organizem nem se engajem na luta de classes.

            Vimos, com as formulações de Kalecki (1943), que o desemprego é uma forma de chantagem de que os capitalistas dispõem para fazer valer sua vontade na política. Embora sejam minoritários em eleições democráticas, a prerrogativa das decisões de investimentos confere aos capitalistas o poder de influenciar de um modo unilateral nas decisões do Estado, o que levou Streeck (2015) a denominar o fenômeno identificado por Kalecki (1943) como “greve de investimentos” – fator estruturante do neoliberalismo. Para boicotar o ensaio desenvolvimentista de Dilma Rousseff, foi uma greve de investimentos o que a burguesia realizou (SINGER, 2018; RUGITSKY, 2015). Se o governo Dilma, em um primeiro momento, contou com o apoio do setor produtivo ao atender demandas da indústria brasileira, foi o acirramento da luta de classes e do conflito distributivo que levou esse segmento à oposição rentista que havia então contra o governo (ibid.), com a formação de uma “frente única antidesenvolvimentista” (SINGER, 2018). Essa frente une a burguesia naquilo que mais lhe caracteriza: a extração de mais-valor, seja para obter lucros produtivos ou para remunerar títulos privados e públicos.

            De um modo americanista, desde o golpe parlamentar de 2016, são implementadas políticas públicas que desmontam o precário Estado de bem-estar social existente no Brasil e retiram possibilidades de intervenção do Estado na economia, para evitar que a democracia volte a intensificar o conflito distributivo. Com o teto de gastos, que antes mencionamos, a expansão das políticas sociais foi dificultada, com o efeito de obrigar os cidadãos a voltarem sua atenção à venda de sua força de trabalho no mercado. Talvez mais significativo ainda seja o fato de que, com essa limitação, dirigir a política econômica para fins de pleno emprego seja inviável. Em seguida à aprovação do teto de gastos, o governo Temer também realizou uma contrarreforma trabalhista permitindo aumento de horas trabalhadas e prejudicando financeiramente os sindicatos.

            Se a reação se tornou explícita em 2016, com as contrarreformas neoliberais do governo Temer, “placas tectônicas”, palavras de Singer (2018), começaram a se mover bem antes. Já em 2013, iniciado um ciclo de elevação das taxas de juros pelo Banco Central, ficavam cada vez mais claros os sinais de insatisfação das classes dominantes com os rumos da política econômica do governo Dilma (ibid.). O historiador Perry Anderson (2019) chama atenção ao fato de que, já nas eleições de 2014, o então deputado federal Jair Bolsonaro conseguiu quadruplicar seu número de votos. Para Anderson, Bolsonaro teve a percepção, nos protestos de junho de 2013, de que o uso de redes sociais para propagar posições radicalmente neoliberais contra o governo petista seria uma promissora estratégia eleitoral. Em outras palavras, embora Bolsonaro não fosse, à época, pessoalmente um neoliberal, ele soube mudar de posição para capturar esse segmento de extrema direita, que sabia fazer um uso intensivo das redes sociais, para se promover eleitoralmente (ibid.).

            É também com uma expressão geológica que Singer (2013) descreve o que se passou nas ruas brasileiras em junho de 2013. Iniciados por grupos de esquerda, que permaneceram nas ruas mesmo quando já não eram maioria, os protestos ocorridos à época acabaram engrossados por todos os segmentos da direita – inclusive grupos autoritários, como veremos –, mas foi um “centro pós-materialista” que conferiu feições ao que hoje se chama de junho de 2013 (ibid.). Esse “abalo sísmico”, dadas as proporções elevadas a ponto de serem motivo de preocupação para o governo Dilma, consistiu numa complexa explosão social que reuniu tanto a classe média tradicional quanto segmentos da classe trabalhadora que obtinham ganhos com o lulismo (ibid.). A propaganda oficial do governo petista chamava o novo proletariado, que resultava da elevação social do subproletariado, de “nova classe média” (SINGER, 2018).  Isso teve o efeito de promover ideologias contrárias ao próprio governo (ibid.), o que pode explicar a adesão de parte dessa nova classe trabalhadora ao discurso da oposição – propalado pela classe média tradicional –, mas aqui queremos chamar atenção a outro aspecto.

            Mesmo considerando a capacidade do “centro pós-materialista” de imprimir suas marcas aos movimentos de junho de 2013 (SINGER, 2013), o que é correto, não podemos ignorar a presença de um neoliberalismo autoritário nesses protestos e de sua forma de propaganda política, logo assimilada por Bolsonaro, o que não escapou da atenção de Anderson (2019). Aliás, a teoria política não se surpreende com a ocorrência de manifestações autoritárias entre os dominados. O sociólogo Theodor Adorno (2020), em 1967, enquanto ainda vigorava o Estado de bem-estar social na Europa, alertou que os “pressupostos do fascismo” não haviam desaparecido na Alemanha, apesar do keynesianismo. O desenrolar da vida econômica, que tem como marca, na percepção dos cidadãos, uma imponderabilidade, proporcionam um mal-estar fruto de insegurança quanto ao futuro. O que ocasiona esse sentimento é a inescapável tendência à concentração da riqueza: mesmo setores que são subjetivamente burgueses permanecem a todo o tempo confrontados com uma possibilidade de “desclassificação social” – risco que é antecipado por aqueles afetados pelas mudanças econômicas. Como alerta Adorno, não é contra os causadores de seus problemas – as classes dominantes –, que o ódio dessas populações se dirige necessariamente. Não raro, se apegam aos valores burgueses ao mesmo tempo em que se direcionam, de modo autoritário, contra aqueles conhecidos por lançarem um olhar crítico sobre a sociedade burguesa: movimentos de esquerda, intelectuais, artistas, entre outros (ADORNO, 2020).

            O lulismo foi capaz de promover uma ascensão social bastante significativa, tendo como canais tanto a formalização do emprego quanto as políticas sociais. Essas mudanças, no entanto, foram realizadas por meio de um “reformismo fraco”, que nem perto chegou de ameaçar a ordem burguesa (SINGER, 2012). Os “pressupostos do fascismo” (ADORNO, 2020) não deixaram de vigorar em momento nenhum. O medo do futuro em razão das mudanças econômicas é presença constante nas sociedades capitalistas. Ocorre que em junho de 2013 eles tinham motivos mais fortes para estar presentes: a reação rentista ao experimento de Dilma em prol do desenvolvimento nacional já havia começado.

            Como Anderson (2019) percebeu, Bolsonaro encontrou à sua disposição, em junho de 2013, uma direita neoliberal disposta a avançar na política. E aqui acrescentamos: disposta a obstruir o processo de inclusão social do lulismo. Em campanha, o líder da extrema direita escolheu o economista Paulo Guedes, com credenciais neoliberais inequívocas (esteve no governo chileno à época de Pinochet), para comandar a economia com ampla liberdade. A prisão do ex-presidente Lula, impedido de concorrer em 2018, facilitou a derrota das classes populares organizadas. É verdade que a centro-direita, opção inicial da burguesia (ibid.) não teve candidatos competitivos. Mesmo assim, os capitalistas encontraram em Bolsonaro alguém disposto a dar continuidade ao projeto neoliberal de intensificação da acumulação. E, para que esse esforço perdure, são cada vez mais anulados os meios de intervenção do Estado na economia – para que os trabalhadores fiquem bem longe da política.

Bibliografia:

ADORNO, Theodor. Aspectos do novo extremismo de direita. São Paulo, Unesp, 2020.

ANDERSON, Perry. Bolsonaro’s Brazil. London Review of Book, 2019.

CHESNAIS, François. A Mundialização do Capital. São Paulo. Xamã Editora, 1996.

GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere, Volumes 3 e 4. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2012

KALECKI, Michael. Political Aspects of Full Employment. In: The Political Quarterly 14(4), 322–331, 1943.

SINGER, André. O lulismo em crise: um quebra-cabeça do período Dilma (2011-2016). São Paulo, Companhia das Letras, 2018.

SINGER, André. Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador. São Paulo, Companhia das Letras, 2012.

STREEK, Wolfgang. Tempo Comprado: A crise adiada do capitalismo democrático. São Paulo, Boitempo, 2015.

STREECK, Wolfgang “O retorno dos reprimidos como início do fim do capitalismo neoliberal”. In Heinrich Geiselberger (org.). A grande regressão. São Paulo, Estação Liberdade, 2019. Capítulo 13.

RUGITSKY, Fernando. O interregno e a pandemia. Revista Rosa, 2020.