O enigma da hegemonia no pensamento de Francisco do Oliveira: hipóteses iniciais de pesquisa

Camila Góes é Doutora em Ciência Política pela Unicamp e atua como pesquisadora no Pepol - Laboratório de Pensamento Político (Unicamp) e no Grupo de Pesquisa Pensamento e Política no Brasil (USP)

Ruy Braga denominou como sendo uma “odisseia gramsciana” o esforço presente na coletânea organizada por ele, Francisco de Oliveira e Cibele Rizek, “Hegemonia às avessas”[1]. Os capítulos contidos na obra, que já em seu título expunha uma noção cara ao pensamento de Antonio Gramsci, buscavam examinar a experiência representada pelos governos de Lula, bem como o significado da crise financeira de 2008 para o futuro do capitalismo. A provocação do título havia sido originalmente lançada por Francisco de Oliveira,[2] tendo ganhado contornos coletivos ao se constituir como ponto de partida para os debates levados à frente do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania da Universidade de São Paulo em 2008 e que resultariam organizados naquele livro, publicado um par de anos depois. Não era ocasional que o desafio teórico lançado por Oliveira fosse formulado em termos gramscianos – é traço relevante de sua obra a referência ao “pequeno grande sardo”, como costumava designá-lo[3].

A despeito da frequência com que o sociólogo tenha recorrido ao pensamento gramsciano para formular problemas contemporâneos e históricos de grande alcance, pouca atenção tem sido dada a essa questão tanto nos estudos sobre a obra de Oliveira, como no âmbito dos estudos gramscianos nacionais.[4] A hipótese deste estudo é que o pensamento de Gramsci tenha permeado a obra de Oliveira desde os anos 1970 em suas investigações sobre as classes sociais e a hegemonia burguesa no Brasil, tendo sido o principal aporte teórico de seus estudos sobre a questão regional no país. Gramsci se tornava uma referência importante na incorporação da dimensão política a suas análises econômicas, na formulação de hipóteses sobre a forma específica como o capitalismo se expandiu no Brasil enquanto hegemonia “inacabada”.

 O problema específico que se busca desvendar, contudo, surge a partir dos anos 1990, quando as hipóteses de Oliveira começam a por em xeque a eficácia do conceito gramsciano de hegemonia. Suas análises sobre os governos de Fernando Collor de Mello e de Fernando Henrique Cardoso apresentaram uma oscilação a esse respeito, na conformação de um verdadeiro enigma sobre quais seriam as consequências, em termos hegemônicos, dos novos tempos inaugurados pelo neoliberalismo.

 Na tentativa de decifrá-lo, Oliveira oscilou entre reconhecer uma vocação hegemônica ao projeto neoliberal – cujos contornos, no Brasil, teriam sido definidos sob a liderança de FHC, seu “condottiere” – e abandonar a própria noção de hegemonia, sinalizando um deslocamento aos conceitos de “totalitarismo” e “apartheid”. Vale destacar que em “O surgimento do antivalor”, publicado em fins dos anos 1980, Chico de Oliveira já havia alertado que o neoliberalismo, enquanto reação pela direita à crise do Welfare State, colocaria em risco os fundamentos da democracia moderna.[5] Sem controles públicos, o sistema capitalista corria o risco de “transformar-se numa tormenta selvagem na qual sucumbiriam juntos a democracia e o sentido de igualdade nela inscrito desde os tempos modernos”.[6]

O desenrolar desse processo, ao longo dos anos 1990, levou Oliveira a delinear um problema teórico de amplas proporções. Já não se trataria mais de uma impossibilidade de hegemonia, típica aos casos de revolução passiva, nem mesmo de sua possibilidade, tendo em vista ampla disseminação dos valores dominantes, como o da estabilidade monetária.[7] Uma diferença crucial daquela conjuntura arriscava tornar o conceito de hegemonia impróprio: o neoliberalismo renunciava, segundo o sociólogo, o projeto de universalização dos valores burgueses.[8] No Brasil, essa renúncia significava o desmantelamento do campo de significados criado pelo processo contraditório de “revolução passiva”, assumindo abertamente uma “cara totalitária”.[9] Em 1997, já avançada a década do “desmanche”,[10] Oliveira se dedicaria a apresentar os contornos do que denominava como “totalitarismo neoliberal”. A nova forma de dominação burguesa apresentava, em todo o mundo, uma incompatibilidade radical com a democracia. No entanto, Oliveira destacava a cadência acelerada que o movimento de privatização do público alcançava na sociedade brasileira, formada por um complexo processo de violência e esforços incompletos de democratização.[11]

Uma década depois, Chico interpretaria a virada dos anos 1980 para os anos 1990 como uma mudança de tempo histórico. Ter-se-ia inaugurado uma nova era no país, “de indeterminação”, que em fina sintonia com a mundialização do capital financeirizado teria sequestrado a política.[12] Em suma, “a sociabilidade centrada no trabalho não pôde resistir, e a vitória ideológica do capital transformou-se numa guerra de todos contra todos”.[13]  O caminho que poderia remar contra a maré neoliberal passava, na opinião de Oliveira, por uma Reforma do Estado que democratizasse os espaços da esfera pública não-burguesa, ampliando-os de modo a permitir que as alternativas com vocação hegemônica se apresentassem.[14] Globalização sem autonomia dos sujeitos sociais e do indivíduos poderia desembocar, segundo alertava o sociólogo em 2002, numa “Auschwitz além de Auschwitz: sem fornos crematórios, mas onde se consomem senão os corpos, pelo menos, qualquer possibilidade de contato humano”.[15]

Naquele mesmo ano, o enigma da hegemonia ganharia enorme complexidade com a chegada de Lula e o Partido dos Trabalhadores (PT) ao governo federal. Estar-se-ia em face de um ressurgimento do conflito hegemônico? A perspectiva gramsciana teria ganhado nova vida? O inusitado está em que Oliveira tivesse oscilado quanto à atribuição de uma vocação hegemônica aos governos da direita, mas que no período lulista jamais tivesse aventado a possibilidade de entendê-lo como “contra-hegemonia”. Contraintuitivamente, o sociólogo não hesitaria mais a esse respeito, abandonando de vez o conceito. Logo no primeiro ano do governo de Lula, em 2003, Oliveira publicaria um notável ensaio de interpretação sobre o Brasil propondo um novo nome ao particular modo de desenvolvimento capitalista no país: O Ornitorrinco. Tratar-se-ia de uma evolução truncada que, embora funcionasse bem do ponto de vista da acumulação, teria resultado numa das sociedades capitalistas mais desigualitárias do mundo.[16] No que tangia o enigma hegemônico, Oliveira era categórico: “a hegemonia, na fórmula gramsciana, elabora-se na superestrutura, e nas suas específicas condições o ornitorrinco não tem ‘consciência’, mas apenas replicação superestrutural”.[17] Ainda sob os auspícios da interpretação promovida em O Ornitorrinco, seria mais uma vez incisivo – afirmaria estar em curso uma “revolução epistemológica”, para a qual ainda não se disporia de ferramenta teórica adequada. Chico de Oliveira, com efeito, inventava ele mesmo uma nova categoria – por trás do conjunto de aparências representadas pelos governos de Lula, o elemento “força” teria desaparecido da equação “força + consentimento”. Sua hipótese era a de que teria surgido, então, uma nova forma de dominação social que inverteria os termos gramscianos, sendo própria e funcional ao capitalismo mundializado – estaríamos diante de uma “hegemonia às avessas”.[18]

A proposição que propõe este estudo é a de que o uso da categoria gramsciana de hegemonia esteja intimamente relacionado à concepção própria que Oliveira constrói de política e democracia – entendida enquanto espaço mútuo de reconhecimento do conflito entre as classes e que abre, ao menos virtualmente, brechas para sua própria negação. Se na ditadura, as brechas foram fechadas pela força,[19] na conjuntura contemporânea era o seu inverso. A anulação do conflito apresentava face totalitária pela via do consentimento[20] – sob o signo da exclusão, tratava-se da dominação burguesa em sua forma mais descarada. Na contracorrente das análises que julgavam a vitória eleitoral de Lula sob o signo da esperança, Chico a entendia como a anulação das esquerdas no Brasil.[21] Haveria, portanto: 1) uma relação íntima entre o uso que Oliveira faz do conceito de hegemonia e sua própria concepção de democracia moderna e política, que, com o advento do neoliberalismo, teriam entrado em xeque juntas e 2) uma precoce elaboração desde o Brasil que associava a crise do capitalismo à crise da democracia, passível de ser captada na inflexão que marca o abandono da categoria de hegemonia iniciada no fim dos anos 1980 e que é completada em suas análises dos governos Lula (2003-2010).

Nesse sentido, estas breves notas iniciais buscam delinear como problema de pesquisa as mudanças ocorridas no pensamento de Chico de Oliveira a partir do prisma gramsciano, de modo a acompanhar o movimento de seu pensamento. A intenção é contextualizá-lo de modo a conectar suas hipóteses e soluções teóricas às transformações que se sucediam no âmbito da sociedade, da economia e da política. Nesse sentido, busca contribuir não só à história intelectual nacional, acompanhando temática e cronologicamente, a partir das mais diversas fontes – artigos em jornais e periódicos, entrevistas, livros, capítulos e conferências – como Oliveira interpretou sua realidade sócio-histórica em permanente tensão com as categorias gramscianas; mas também busca contribuir à teoria política contemporânea, na medida em que se indaga a atualidade de seus diagnósticos para pensar o mundo atual, marcado não só por uma aguda crise do capitalismo como também por um profundo abalo da democracia. A dupla perspectiva, da economia política, é traço notável da obra do sociólogo, considerado uma das mentes mais criativas e originais da América Latina.[22]

 

[1] Braga, Ruy. “Apresentação”. In:  Oliveira, Francisco; Braga, Ruy; Rizek, Cibele (orgs). Hegemonia às avessas: economia, política e cultura na era da servidão financeira. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 14.

[2] Uma primeira versão do artigo “Hegemonia às avessas” havia sido publicada em Piauí, Rio de Janeiro/ São Paulo, n. 4, jan. 2007.

[3] Nos subtítulos de Os direitos do antivalor (1998) e de Os sentidos da democracia (1998) o conceito também comparecia, como se vê, respectivamente em “a economia política da hegemonia imperfeita” e “políticas do dissenso e hegemonia global”.

[4] Além da autorreflexão proposta por Braga na apresentação de Hegemonia às avessas, destaca-se, a título de exceção, o capítulo de Maria Elisa Cevasco, “Reverse hegemony?”. In: Jameson, Frederic; Dainotto, Roberto. Gramsci in the world. Durham: Duke University press, 2020.

[5] Oliveira, Francisco. “O surgimento do antivalor”. Os direitos do anti valor: a economia política da hegemonia imperfeita. Rio de Janeiro: Vozes, 1998 [1988].

[6] Oliveira, 1998 [1988], op. Cit., p. 47.

[7] Oliveira, Francisco. “Além da hegemonia, aquém da democracia”. Os direitos do antivalor: a economia política da hegemonia imperfeita. São Paulo: Vozes, 1998 [1997], p. 201.

[8] Oliveira, 1998 [1997], op. Cit., p. 202.

[9] Ibid., p. 202 e p.203.

[10] Termo de Roberto Schwarz, ver “Fim de século”, in Sequências Brasileiras, São Paulo: Companhia das letras, ([1994] 1999) e “Prefácio com perguntas”, in Oliveira, Francisco, Crítica à razão dualista/ O Ornitorrinco, São Paulo: Boitempo, 2003. Os argumentos do crítico literário exposto em ambos os textos tiveram grande impacto na obra de Oliveira e na agenda de pesquisa do CENEDIC. Ver: Oliveira, Francisco. “Um crítico na periferia do capitalismo”. In: Cevasco, Maria Elisa; Ohata, Milton. (Orgs).  Um crítico na periferia do capitalismo: reflexões sobre a obra de Roberto Schwarz. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

[11] Oliveira, Francisco. “Privatização do público, destituição da fala e anulação da política: o totalitarismo neoliberal”. In: Oliveira, Francisco; Paoli, Maria Célia (orgs.). Os sentidos da democracia: políticas do dissenso e hegemonia global. Rio de Janeiro: Vozes, 2000 [1997].

[12] Oliveira, Francisco. “Política numa era de indeterminação: opacidade e reencantamento”. In: Oliveira, Francisco; Rizek, Cibele (orgs.). A era da indeterminação. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 29.

[13] Oliveira, 2007, Op. Cit., p. 35.

[14]Oliveira, Francisco. “Reforma e contrarreforma do Estado no Brasil”. In: Bocayuva, Pedro C. C.; Veiga, Sandra M. (orgs). Afinal, que país é este? Rio de Janeiro: DP&A editora, 2002, p. 96.

[15] Oliveira, 2002, op. Cit., p. 96.

[16] Oliveira, Francisco. A crítica da razão dualista/ O Ornitorrinco, São Paulo: Boitempo, 2003, p.143

[17] Oliveira, 2003, op. Cit., p. 149-150.

[18] Oliveira, 2010 [2007], op. Cit., p. 24.

[19] “O golpe de Estado de 1964 e toda sua duração não foram senão o esforço desesperado de anular a construção política que as classes dominadas haviam realizado no Brasil, pelo menos desde os anos trinta”. Oliveira, Francisco, 2000 [1997], op. Cit., p. 64.

[20] Paulo Arantes ajudava a esclarecer a fórmula difícil de Oliveira, que considerava certeira, mas de exposição incerta: “não são mais os dominados que consentem na sua própria exploração, são os capitalistas que consentem em ser politicamente conduzidos pelos dominados, desde que a ‘direção moral’ exercida paradoxalmente por estes últimos não questione a forma da exploração capitalista (...)”. “Prólogo”. O novo tempo do mundo: e outros estudos sobre a era da emergência. São Paulo: Boitempo, 2014, p. 349.

[21] Oliveira, 2010 [2007], op. Cit., p. 25.

[22] Anderson, Perry. Lula. Brasil à parte, 2020 [2011], p. 78.