Bolsonaro e o fascismo: do fenômeno psicológico à expressão neoliberal
Marina Basso Lacerda
Discute-se se Bolsonaro, ou se Trump, seriam fascistas.
Alguns atributos fascistas poderiam ser conferidos a Bolsonaro, como argumentei em texto anterior: pouca preocupação com questões políticas concretas e tangíveis, sem programa positivo algum; mobilização contra o princípio democrático; irracionalidade; agressividade; propensão à ação violenta; reacionarismo e regressão dos patamares civilizatórios; autoritarismo; propaganda com repetição contínua; e centralização no líder hipnotizador, autoritário, narcisista, afastado da ideia de amor e que sintetiza a figura de um certo homem comum.
Essa relação de características não fui eu quem fez. É elencada por Theodor Adorno em artigo de 1951, no qual, a partir de Freud – sobretudo em Psicologia das massas e análise do eu, de 1921, – o membro da Escola de Frankfurt discute a psicanálise da adesão ao fascismo. As semelhanças entre as características das massas hitleristas descritas por Adorno e as do bolsonarismo são gritantes, desnecessário pontuá-las para qualquer brasileiro.
Mas, mais do que delimitar as feições das massas fascistas, o que Adorno pretende entender, a partir de Freud, é como indivíduos, filhos da modernidade, do Iluminismo, revertem a padrões de comportamento que contradizem seu nível racional.
Fascismo como fenômeno libidinal e narcísico
A resposta, para Freud, é: o vínculo que integra os indivíduos às massas é libidinal; é uma experiência prazerosa se render ilimitadamente às paixões e ser assim absorvido no grupo, recuperando porções de sua herança primitiva. O fascismo, diz Adorno, seria uma rebelião contra a civilização, reproduzindo o arcaico no seu interior. O líder é quem desperta no sujeito seu arcaísmo, ao reanimar a ideia do todo-poderoso e ameaçador pai primitivo, onipotente e não controlado – na linguagem do Brasil do século XXI, a ideia de um “mito”.
O narcisismo individual é substituído, de acordo com o esquema teórico de Freud, pela identificação – hipnótica até – com a imagem do líder. Para isso esse líder, de um lado, tem que aparecer como absolutamente narcisista e autoconfiante; ele não precisa amar mais ninguém a não ser a si mesmo. É isso que explica, para os autores, a ausência de um programa positivo e de qualquer coisa que o líder possa “dar”: o líder só pode ser amado se ele próprio não amar.
De outro lado, o líder é a ampliação da própria personalidade do sujeito, “uma projeção coletiva de si mesmo”. Ele precisa possuir, de forma particularmente marcada, as características típicas dos seguidores, só que com impressão de maior força e maior liberdade de libido. Deve ser ao mesmo tempo um super-homem e uma pessoa comum, “da mesma maneira como Hitler se apresentou como uma mistura de King Kong e barbeiro de subúrbio”. É o conceito do “grande homem comum”, alguém que sugere tanto onipotência quanto a ideia de que é apenas um de nós. Por exemplo, alguém que sobreviva a uma facada mortífera e ao mesmo tempo use linguagem vulgar e coma pão com leite condensado no café da manhã.
E, assim, os sujeitos, como num rebanho, aceitam e gostam do autoritarismo do líder. Isso porque, ao se identificarem com o líder, as pessoas assumem que elas próprios são o opressor cruel. O líder fascista, diz Adorno, pode adivinhar os desejos e necessidades psicológicas dos que são suscetíveis à sua propaganda porque a eles se assemelha psicologicamente, capaz de expressar sem inibições o que neles está latente – por exemplo, e isso digo eu, uma misoginia desenfreada –, em vez de lançar mão de alguma superioridade intelectual ou moral – como a que possuem os professores ou defensores de direitos que eles querem tanto destruir.
Outro mecanismo agregador do fascismo é a lógica do inimigo, expressa na tendência de odiar minorias e diferentes. É a distinção entre o amado in-group e o rejeitado out-group. Novamente Freud identifica uma função libidinal nesse dispositivo: já que a libido positiva está completamente investida na imagem do pai primitivo, e já que poucos conteúdos positivos estão disponíveis, um negativo deve ser encontrado. O ódio age como uma força negativamente integradora. E o ganho narcisista nesse esquema é óbvio: ela sugere que o seguidor, simplesmente por pertencer ao grupo, é melhor do que aqueles que estão excluídos.
O fascismo nasce nas feridas do capitalismo
Enfim, no fascismo há uma apropriação, pelos opressores, dos vínculos que integram as massas, ou seja, das tendências narcísicas e arcaicas dos indivíduos. Mas, como pontua Adorno, o fascismo mobiliza a psicologia de massas como mandatário de interesses econômicos e políticos poderosos. Ele é preciso: as disposições psicológicas não causam o fascismo; antes, o fascismo define uma área psicológica que pode ser explorada com sucesso pelas forças que o promovem por razões completamente não-psicológicas.
Em conferência proferida em 1967, publicada com o nome de Aspectos do Novo Radicalismo de Direita, Adorno reitera esse argumento: o fascismo não é um fenômeno primariamente psicológico; não é, “de forma alguma, só psicologicamente motivado”; ele tem também uma base objetiva. E, mais, “a afirmação de que haveria na democracia um resíduo de incorrigíveis idiotas” não passa de um “consolo quietista burguês” (p. 50-52).
Adorno, nesse ponto, usa os argumentos de Horkeheimer de 1939, para quem o fascismo não seria um fenômeno estranho à modernidade e ao capitalismo; ao contrário, seria “a verdade da sociedade moderna”, pois “solidifica as diferenças extremas de classe que que a lei da mais-valia finalmente produziu”, cravando a frase célebre: “quem não quer tratar do capitalismo deveria calar-se também sobre o fascismo”.
Ou, nas palavras de Adorno, a relação do fascismo com a economia seria uma relação estrutural que existe na tendência de concentração e na tendência de pauperização. Os movimentos fascistas seriam mesmo “as feridas, as cicatrizes de uma democracia que até hoje não fez justiça ao próprio conceito” (Aspectos... p. 5).
Cicatrizes do neoliberalismo
Wendy Brown, em Nas Ruínas do Neoliberalismo, sustenta que os valores tradicionais fornecem proteção contra os deslocamentos e perdas que quarenta anos de neoliberalismo renderam para as classes trabalhadoras e médias. Baseada em David Goodhart, ela argumenta que aqueles que se sentem “deixados para trás” na onda crescente de cosmopolitas e beneficiários das políticas de identidade, as pessoas enraizadas em um lugar, geralmente em um espaço suburbano, com educação limitada, tendem a abrigar visões sociais conservadoras.
Adorno, já em 1967, observou, no contexto da fundação do partido neonazista na Alemanha, que há nos movimentos fascistas “uma posição entre a província e a cidade que se agrava” (Aspectos... p. 49).
Para Brown, especialmente para essas pessoas, de alguma forma “deixadas para trás”, os valores tradicionais forneciam proteção contra os deslocamentos e perdas que quarenta anos de neoliberalismo renderam para as classes trabalhadoras e médias. Esse argumento teórico de Wendy Brown também vem sendo confirmado no Brasil.
E, pela sua penetração nas classes populares, ocorre o que Brown chama de uso da moralidade como arma política, porque foi o instrumento para que a adesão ao neoliberalismo chegasse nas classes populares.
Propaganda fascista e o WhatsApp
Para Adorno, não se deve subestimar os movimentos fascistas devido ao seu baixo nível intelectual ou à sua ausência de teoria. O que é característico desses movimentos é a “extraordinária perfeição dos meios”, sobretudo dos meios propagandísticos. Neles, os meios são racionais os fins são irracionais. Nesses movimentos de direita radical, para ele, a propaganda constitui a própria substância da política (Aspectos... p. 54).
A repetição contínua, exigida pela propaganda fascista, é promovida hoje pelas mídias digitais, sobre as quais – sobretudo o WhatsApp – não há qualquer controle eficiente. O livro Os engenheiros do caos, do italiano Giuliano Da Empoli, mostra que os algoritmos potencializam o engajamento a partir de mentiras, teorias da conspiração irracionais e de sentimentos negativos como ódio, medo e ressentimento.
Diferenças
O bolsonarismo é um fenômeno único, que se aproxima e se distancia de outros movimentos pretéritos. Há semelhanças com o fascismo. Mas há diferenças.
O fascismo surgido na Europa da primeira metade do século XX foi um projeto nacionalista, que expressava a “fúria” de países destruídos pela guerra (Aspectos... p. 59), e o nacionalismo de Bolsonaro é apenas nominal; privilegia alianças assimétricas e absolutamente desvantajosas (vide a situação das vacinas para a Covid-19). Além disso, o nacionalismo dos países de centro não se compara com os dos países de periferia, enquanto aliança de povos oprimidos ou marginalizados. O nacionalismo fascista implicava ainda em forte antiamericanismo, justamente o contrário de Bolsonaro.
Além disso, o fascismo floresceu quando vigiam, no mundo, diferentes formas de intervencionismo estatal na economia. O fascismo também propunha modelos de dirigismo e de proteção de parcela de seus cidadãos, os trabalhadores assalariados. Já o Brasil de Bolsonaro é de um neoliberalismo agressivo, que não defende direitos para nenhum dos grupos de trabalhadores, nem daqueles das classes médias.
Outra diferença é que, como aponta Felipe Catalani, a nova direita hoje possui uma “lógica social do colapso”, ao passo que o nazifascismo tinha uma lógica de ascensão e expansão, embora esse “desejo do fim do mundo” ou de “catástrofe social”, essa “escatologia à direita”, já pudesse ser observada em 1967, com a fundação do partido neonazista alemão (Prefácio a Aspectos..., p. 14).
Feitiço escatológico
O líder fascista é aquele capaz de expressar os conteúdos inconscientes e primitivos sem freios e, assim, criar uma identificação com os que compartilham, mais timidamente, das mesmas crenças. Isso explicaria a adesão à escatologia. Bolsonaro deseja e goza a morte alheia e despreza a vida – “apesar da vacina”, disse. Considerando o arcabouço de Freud, seus seguidores também assim sentiriam. Seria uma macabra “hipnose coletiva”, que até hoje não deu provas consistentes de arrefecer. Mas, como disse Adorno em 1951, esse aumento “bem pode terminar numa súbita consciência da inverdade do feitiço e, por fim, em seu colapso”. Que assim seja e que não demore.
Marina Basso Lacerda é Pesquisadora do CENEDIC da FFLCH/USP, pós-doutoranda no Departamento de Ciência Política na USP, doutora em Ciência Política pelo IESP/UERJ e autora do livro O Novo Conservadorismo Brasileiro: de Reagan a Bolsonaro (Zouk, 2019).