A institucionalização da austeridade fiscal como aspecto da consolidação da hegemonia neoliberal no Brasil

Alessandra Soares Freixo Rafael Costa

Se nos países capitalistas avançados do norte global a reconfiguração da política econômica para um esquema neoliberal desmontou de maneira contínua o welfare state do pós-guerra (Fraser e Jaeggi, 2018; Streeck, 2014), a introdução desse ideário diante do contexto institucional brasileiro apresentará sentido distinto, que buscaremos explorar ao longo do texto. O ponto de partida escolhido, a crise da dívida da década de 80, representaria uma rachadura do pacto estrutural entre a burguesia industrial e as classes proprietárias rurais que orientou desde a década de 1930 o modelo de Estado desenvolvimentista (Oliveira, 2013 [1973]). Ela surge do cruzamento entre a financeirização da economia promovida pelo endividamento externo feito por esse arranjo específico e a reconfiguração da orientação geral do capitalismo para um sentido neoliberal.

Um fundamento importante do receituário econômico do neoliberalismo é a ideia de austeridade, caracterizada como uma forma de deflação voluntária em que a economia passa por um ajuste através da redução de salários, preços e gastos públicos. Segundo os defensores dessa ideologia, a melhor maneira de colocá-la em prática é o corte no orçamento público, entendido como a forma ideal para reduzir a dívida pública e evitar déficits fiscais. Essa seria uma sinalização ao “mercado” de que o Estado não iria sugar o investimento disponível através de novas emissões de dívida, nem aumentar seus débitos a níveis impagáveis, constituindo, portanto, um mecanismo de construção de confiança junto aos empresários (Blyth, 2017).

Desse modo, a construção de um arcabouço legal de controle das finanças públicas durante as décadas de 80 e 90, institucionalizando a política de austeridade no Brasil, constitui um aspecto específico da construção da hegemonia neoliberal. Discutiremos essa questão a partir (i) da forma pela qual a crise da dívida da década de 80 e seu impacto sobre o modelo de Estado desenvolvimentista desdobrou-se na forma que a Constituição Federal de 1988 (CF/88) tratou do tema de controle das finanças públicas; (ii) de como a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) liga-se a previsões da CF/88 e institucionaliza a austeridade no Brasil; (iii) de quais entraves políticos o ensaio desenvolvimentista de Dilma Rousseff (Singer, 2018) enfrentou diante da austeridade institucionalizada.

Crise fiscal e Constituição Federal de 1988: pacto social de compromisso com o equilíbrio das contas públicas

A crise da dívida pública brasileira do início da década de 80 marcou o início do declínio do modelo de Estado desenvolvimentista que atravessou regimes políticos diversos desde o Estado Novo, passando pela República de 46, até a ditadura civil-militar (Sallum Jr e Kugelmas, 1991). O endividamento externo foi usado como parte da estratégia de estímulo industrial posta em prática nesse período, representando uma tentativa de superar o problema do financiamento interno da expansão do capital (Oliveira, 2013 [2003]). Com a crise do petróleo de 1973, a confiança no crescimento econômico iniciado em 1967 foi abalada, e “o regime temia a instabilidade política no caso de uma desaceleração econômica acentuada ou um ajuste contracionista” (Saad Filho e Morais, 2018).

O lançamento do II Plano Nacional de Desenvolvimento em 1974 foi a resposta do governo militar à possibilidade de uma crise de confiança da burguesia nacional. A estratégia de manutenção do crescimento econômico foi fundamentada num programa de substituição das importações calcado em investimentos em infraestrutura e expansão da base de produção industrial, plano este financiado substancialmente por empréstimos externos. Assim, subjacente ao planejamento voltado à independência do setor produtivo nacional, desenvolveu-se um gradativo processo de dependência financeira em relação ao mercado internacional de capitais (Sallum Jr. e Kugelmas, 1991).

Com efeito, um dos fatores determinantes para a crise foi o aumento da taxa de juros pelos países do norte global para combater a estagflação que viviam na segunda metade da década de 70, primeiro ponto do giro neoliberal do capitalismo ocidental (Almeida, 2014; Sallum Jr e Kugelmas, 1991; Streeck, 2014). Esse fato somado à nova elevação do patamar dos preços do petróleo em 1979, evidenciou a fragilidade do crescimento econômico conduzido pelo Estado nesses moldes.

Como resultado da difícil compatibilização dos papéis historicamente avocados pelo poder público - protetor das atividades econômicas e indutor do processo de diversificação industrial - no início da década de 80 o “endividamento público interno surge como válvula de escape à maré montante de pressões, no sentido da manutenção da lucratividade privada e da conservação do desenho tradicional do aparelho do Estado” (Sallum Jr.e Kugelmas, 1991), na medida em que a interrupção do fluxo de capital externo associada à redução da capacidade extrativa do Estado foi acompanhada de uma crescente estatização da dívida externa através da absorção do déficit do setor privado. Assim, não foi o intervencionismo

estatal, em si, que causou a crise fiscal da década de 80 – instalada não só no Brasil, mas na América Latina – mas sim “um fato histórico novo”, consubstanciado na “decisão tomada nos anos 70 por governos não-populistas – geralmente militares e autoritários – com o apoio dos bancos credores, de contrair uma enorme dívida externa e em seguida estatizá-la” (Bresser-Pereira, 1991).

A partir de uma “distensão lenta, gradual e segura” para a democratização, a CF/88 representou a correlação de forças conservadoras e progressistas que disputaram a elaboração do texto normativo durante a Assembleia Constituinte de 1987, num contexto de indeterminação do próprio processo de fundação (Araújo, 2013). A previsão de direitos sociais oponíveis ao Estado foi acompanhada de um sistema tributário descentralizado, que distribuiu de maneira desproporcional o peso da tributação sobre produção e consumo, em detrimento da tributação direta e progressiva da riqueza, e retirou das mãos do governo federal parcela considerável da arrecadação dos impostos de sua competência (através dos Fundos de Participação de Estados e Municípios). Não bastasse o paradoxo inerente ao financiamento de direitos sociais via tributação regressiva (Fandiño e Kerstenetzky, 2019), a CF/88 dedica um extenso capítulo de seu texto às finanças públicas e às regras de controle fiscal (arts. 163 a 169), sinalizando que a dívida pública teria um marco regulatório com características de pacto social.

Neste aspecto, a CF/88 pode ser compreendida como um desdobramento institucional do compromisso de ajuste fiscal sedimentado durante a década de 1980 e assumido pelo Estado na fundação da nova ordem. A compatibilidade do compromisso de manutenção do equilíbrio das contas públicas com os anseios partilhados pelos organismos internacionais de financiamento, tais como o Fundo Monetário Internacional (FMI), e pela burguesia nacional se expressa através da estruturação dos marcos normativos para manejo do orçamento por meio de rigorosas vedações para consecução de despesas, criando a ideia de uma necessária responsabilidade do gestor no uso do dinheiro público. Lançadas as bases constitucionais para a ordenação financeira do Estado, a legislação que se seguiu com o propósito de sua regulamentação aprofundou a vinculação dos governos a regras rígidas de controle de despesas, numa clara sinalização ao mercado interno e externo de que a confiança na gestão pública seria perenizada por meio de uma institucionalidade que assegura o pagamento da dívida pública.

Estabilização econômica de viés neoliberal: a institucionalização da austeridade através da Lei de Responsabilidade Fiscal

Prévia e concomitantemente ao processo constituinte, o governo brasileiro encarou idas e vindas nas negociações com seus credores, sendo a relação com o FMI paradigmática das dificuldades encontradas para equacionar as questões fiscais com as políticas. As exigências feitas pelo staff da instituição financeira no primeiro acordo firmado (1983), tais como a desindexação da economia, não foram cumpridas nem pelo governo militar, nem pelo governo Sarney devido à inviabilidade política das propostas (Almeida, 2014). O forte caldo de mobilização social do período, denotado pelo grande número de greves (Noronha, 2009), impunha um limite às possibilidades dos interesses dos atores financeiros junto ao governo e à assembleia constituinte.

Mesmo com acesso a uma linha especial de crédito do FMI de US$90 bilhões, volume sem precedentes à época (Almeida, 2014), o governo brasileiro entrou em moratória em 1987. O pacto social pelo equilíbrio das contas públicas consagrado na CF/88 foi feito diante desse cenário e apresentava-se aquém das exigências dos credores, seria necessário algum outro conjunto de medidas para sair da incômoda situação fiscal. Era dominante entre eles o receituário presente no decálogo do “Consenso de Washington” para solução da crise brasileira. Em linhas gerais, era proposta a estabilização da economia através de um ajuste fiscal rigoroso, da liberalização e da privatização da economia para que o mercado desempenhasse o papel fundamental (Bresser-Pereira, 1991).

Uma fração do programa descrito acima foi institucionalizada durante o governo Collor (1990-1992) através da abertura comercial e aprovação da legislação que permitia privatizações de setores da economia controlados diretamente pelo Estado. No entanto, o ajuste fiscal “definitivo” ainda demoraria para vir. A opção inicial do Plano Real (fev/1994) foi estabelecer um combate à hiperinflação do período através de altíssimas taxas de juros e taxa de câmbio valorizada (Sallum Jr., 1999). É interessante sublinhar a semelhança do viés dessa política com aquela adotada em meados da década de 70 nas economias capitalistas avançadas do norte global, também no sentido de conter a inflação em seus países (Streeck, 2014). Na esteira da estabilização monetária obtida pela tática, há a suspensão da moratória de 1987 e eleição para presidência da República do Ministro da Fazenda responsável pela condução do programa, Fernando Henrique Cardoso.

Em paralelo a estabilização obtida no primeiro mandato de Cardoso (1995-1998), ocorre um declínio das agitações sociais que marcaram o país até o impeachment de Collor, tendo como um dos indicativos desse movimento a redução do número de greves, especialmente a partir de 1997. Nogueira (2009) considera que um dos elementos para a regressão em relação ao padrão da transição democrática foi a melhoria dos indicadores econômicos no período. Também é possível considerar a hipótese que o duro trato do governo federal à greve dos petroleiros em 1995 tenha debilitado o movimento sindical no período ao sinalizar intransigência no trato com movimentos grevistas (Sallum Jr., 1999).

De todo modo, ao ter de encarar uma nova crise financeira mundial entre 1997 e 1998, o governo da época já não enfrentava a mesma pressão vinda das ruas que seus predecessores tiveram de lidar para tocar a agenda econômica e social. A moratória russa (1998) abriu a possibilidade do país obter uma linha de crédito preventiva oferecida pelo FMI, Banco de Compensações Internacionais (BIS) e países-membros do G-7. Desta vez, as instituições financeiras colocaram como exigência do empréstimo um ajuste fiscal com redução dos gastos públicos equivalente a 2,5% do Produto Interno Bruto (PIB), que seria monitorado pelo staff das instituições (Almeida, 2014).

Diante desse contexto e a fim de garantir a confiança dos credores, institui-se o Programa de Estabilização Fiscal (out/1998) que estabeleceu previsões de poupança orçamentária nos gastos correntes do governo condizentes com uma relação desejável de PIB e dívida pública, um acúmulo de resultados positivos configuraria um superávit do resultado primário. Essa iniciativa representa o primeiro passo no sentido da institucionalização da austeridade fiscal, a ser consumada pela aprovação da LRF, no segundo mandato de Cardoso (2000), com o regime de metas fiscais (Leite, 2011).

A LRF conecta-se à CF/88 pelo fato de ser uma Lei complementar responsável por regulamentar o abrangente art. 163 da Carta Magna. O compromisso genérico com a manutenção do equilíbrio das contas públicas, resultado de um pacto social realizado num momento de intensa mobilização popular, é preenchido pelo conteúdo político da austeridade justamente num momento de refluxo da agitação nas ruas. Além da previsão do Anexo de metas fiscais (art. 4o, §§ 1o e 2o), também são estabelecidos limites e controles de gastos com pessoal dos três poderes, em todas esferas da federação (arts. 19, 20, 21 e 22). Ambas medidas têm forte ressonância dos preceitos sobre finanças públicas do "Consenso de Washington”, visando controlar, ou até mesmo reverter, um suposto tamanho excessivo da máquina estatal (Bresser-Pereira, 1991).

O regime de metas fiscais, conforme institucionalizado pela LRF, serviria para aferir quanto das despesas correntes da atividade estatal foram poupadas para garantir uma trajetória controlada da relação PIB-dívida, em outras palavras, para garantir a liquidez do Estado frente a seus credores. Seu resultado positivo ou negativo não está diretamente relacionado ao desempenho da economia real, mas quanto teria ou não sido poupado para pagamento da dívida pública. Trata-se, portanto, de um indicador político disfarçado de indicador econômico, já que serve somente para medir o grau de austeridade do governo num determinado exercício fiscal.

Desse modo, a austeridade passou a integrar a ordem do Estado brasileiro, inserindo um novo conteúdo político ao regramento constitucional acerca das finanças públicas. No entanto, a formalização da hegemonia neoliberal em âmbito fiscal não era garantidora, por si só, de que o desempenho econômico do país iria prosperar. O segundo mandato de Cardoso (1999-2002) já de início foi marcado por um retorno moderado da inflação e empobrecimento da população (Sallum Jr., 1999). As medidas de liberalização da economia desmancharam o modelo de Estado desenvolvimentista sem apresentar uma saída ao setor produtivo, especialmente o industrial, que sem esse apoio viveu um período de espasmos de crescimento intercalados por momentos de forte retração (Diniz e Boschi, 2003).

Diante desse cenário, abriu-se a possibilidade à força política que durante as décadas de 80 e 90 esteve associada às manifestações públicas contrárias a aplicação do ideário neoliberal, o Partido dos Trabalhadores (PT), formar uma coalizão capaz de amalgamar setores sociais diversos prejudicados pela nova ordem. Sua “segunda alma”, a do Anhembi (Singer, 2012), formulou um programa que buscava unir a classe trabalhadora empobrecida e os setores produtivos em torno de uma agenda de inclusão social sem rupturas institucionais. Isso significava, do ponto de vista fiscal, manter o respeito à institucionalização da austeridade.

Reformismo fraco, ensaio desenvolvimentista e novo ajuste fiscal: o lulismo e a institucionalidade austera.

O primeiro governo Lula, eleito sob a marca da “Carta ao povo brasileiro”, manteve compromisso com a disciplina fiscal, chegando a aplicar no primeiro mandato um ajuste superior ao feito no último ano de mandato de Fernando Henrique Cardoso (Almeida, 2014). O lulismo inseriu interesses do trabalho no orçamento público e buscou equilibrá-los com os interesses do capital, caracterizando-se como um “reformismo fraco sem confrontamento da

ordem” (Singer; 2012). Operou desse modo transformações significativas na ordem social, na medida em que inclui parcela expressiva do subproletariado no processo de distribuição de renda, através de uma política de combate à pobreza, num quadro de manutenção da estabilidade macroeconômica, anunciado já no primeiro ano de seu mandato.

À adoção de uma política econômica conservadora nos primeiros meses de 2003, seguiu-se um processo de gradual implementação de políticas sociais de transferência de renda e estímulo ao mercado interno – sem confronto com o capital –, viabilizadas por uma conjuntura econômica favorável, mas decorrentes de uma orientação de natureza política. Assim, “o pulo do gato de Lula foi, sobre o pano de fundo da ortodoxia econômica, construir substantiva política de promoção do mercado interno voltado aos menos favorecidos, a qual, somada à manutenção da estabilidade, corresponde a nada mais nada menos que a realização de um completo programa de classe (ou fração de classe, para ser mais exato)” (Singer, 2012).

O processo de realinhamento eleitoral ocorrido em 2006, efeito da construção de uma base lulista durante o quadriênio anterior, consolidou o lulismo como fenômeno portador de diferentes sentidos e o Partido dos Trabalhadores como a síntese de duas almas, na medida em que, operando por dentro da ordem, colocou em marcha o programa de redução das desigualdades na esteira do crescimento econômico sem rupturas críticas com os interesses do capital. A partir da mudança de conjuntura provocada pela crise internacional de 2008 somou-se às políticas de combate à pobreza um conjunto de políticas anticíclicas, no sentido de proteger o setor produtivo, o emprego e a renda (Singer, 2012). Desse modo, sem romper com o arcabouço de disciplina fiscal, o lulismo dava mais espaço à agenda da coalizão produtivista em âmbito orçamentário através de estímulos governamentais diretos.

Posteriormente, tal experiência foi aprofundada pelo ensaio desenvolvimentista do primeiro mandato de Dilma, em que há um papel do Estado como indutor da economia equiparável ao período do II Plano Nacional de Desenvolvimento (1974-1979). O sonho rooseveltiano de reindustrialização nacional (Singer; 2018) através da adoção de uma massiva política de investimentos voltada ao setor produtivo associada à Nova Matriz Econômica, foi uma tentativa ousada de manter o crescimento, num ambiente de crise financeira internacional, e acelerar o processo de redução das desigualdades com formalização de postos de trabalho. Dilma, que foi eleita sob os auspícios do lulismo, apostou numa política antiliberal, ao vislumbrar a possibilidade de uma “coalizão de forças entre industriais e trabalhadores” (Singer, 2016) e, ao mesmo tempo, enfrentar interesses poderosos do capital financeiro.

Durante o primeiro mandato, o governo federal adotou medidas de nítido caráter intervencionista, demonstrando a potencialidade do Estado como indutor do desenvolvimento econômico. Com o objetivo de fomentar o investimento por parte do setor produtivo, o governo apostou em várias frentes de atuação: redução dos juros, uso intensivo do BNDES, aposta na reindustrialização, desonerações, plano para infraestrutura, reforma do setor elétrico, desvalorização do real, controle de capitais e proteção ao produto nacional (Singer, 2016).

Mas a consecução de um projeto deste porte exigia uma base de sustentação à altura. O que se seguiu à batalha dos spreads de 2012 (Singer, 2018), acompanhada de um discurso público do governo sobre a exorbitância dos juros praticados pelo sistema financeiro, e à reforma do setor elétrico foram acontecimentos que se desdobraram em várias frentes e encontraram convergência no gradual abandono ao ensaio desenvolvimentista. Os movimentos de junho de 2013, a seletividade da operação lava-jato, o baixo crescimento econômico em 2014 não impediram a reeleição de Dilma, mas contribuíram para que seu breve segundo mandato transcorresse num clima de instabilidade política e crise.

Num cenário de baixo crescimento econômico e queda na arrecadação tributária, a manutenção de programas sociais, política de valorização do salário-mínimo e aportes para continuidade da prestação de serviços públicos dependeria, dentre outros fatores, da expansão das bases tributáveis que manifestassem riqueza, como pretendeu Dilma ao cogitar a volta da CPMF1. Sendo múltiplos os focos de pressão e de resistência, já sem apoio da coalizão produtivista, o governo realizou cortes em gastos sociais, o que revelou a permeabilidade do discurso de “adoção de uma fiscalidade austera como reação a um contexto de crise econômica” (Silva e Tavares, 2020). Assim, a pressão distributiva, na perspectiva dos gastos públicos, pode mobilizar o aparato ideológico da austeridade, que funcionaria, nesse caso, para “bloquear o avanço das demandas por redução das desigualdades” (Rugitsky, 2015).

Nesse sentido, o encontro do ensaio desenvolvimentista com aparatos legais de controle orçamentário, fundados em ideais de austeridade fiscal, não perdurou. A incapacidade no alcance da meta fiscal ao longo 2014 serviu como arma política da coalizão rentista, neste momento já apoiada pela burguesia industrial que abandonara a coalizão produtivista ao longo de 2013, para defender um forte ajuste, aplicado no segundo mandato de Dilma, abreviado por um golpe parlamentar (Singer, 2018). De fato, os reclames urgentes

1 MOREIRA, Assis. Aprovar a CPMF é fundamental para fechar as contas, diz Dilma. Valor Econômico, Belek (Turquia), 16/11/2015. Disponível em: <https://valor.globo.com/brasil/noticia/2015/11/16/aprovar-a-cpmf-e-fund… ma.ghtml>. Acesso em 05/05/2021.

pelo ajuste fiscal vocalizados num cenário em que não se mostraram resultados positivos a partir da aplicação da Nova Matriz Econômica, de certa forma, encontraram seu canal de expressão no pretenso discurso formalista a respeito da violação de dispositivos constitucionais de preservação das finanças públicas. Prova disso foi o pedido de impeachment de Dilma que teve como prelúdio a rejeição das contas de 2014 do governo federal, pelo Tribunal de Contas da União.

Sob o manto da análise técnica a respeito do descumprimento da lei orçamentária, se articula a ação política em torno da ideia de que “ sem um ajuste de caráter permanente que sinalize um equilíbrio duradouro das contas públicas, a economia não vai retornar seu crescimento e a crise deve se agravar ainda mais”, da qual a Ponte para o futuro, construída e lançada pelo PMDB - Fundação Ulysses Guimarães, em 29 de outubro de 2015, é o exemplo mais emblemático. Neste documento estão presentes os imperativos para um ambiente confiável e um Estado funcional, sintetizados numa cartilha que reclama a interrupção do crescimento da dívida pública, reforma da previdência com desindexação de qualquer benefício ao valor do salário mínimo, o fim das vinculações constitucionais, como dos gastos com saúde e educação, e ajuste fiscal sem aumento de impostos.

Não à toa, em 15/06/2016, a partir de um diagnóstico de “necessária mudança de rumos nas contas públicas, para que o País consiga, com a maior brevidade possível, restabelecer a confiança na sustentabilidade dos gastos e da dívida pública”2, o Poder Executivo apresentou a PEC do “teto dos gastos”, já durante o governo interino de Michel Temer, sinalizando para a construção de um estado perene de consolidação fiscal, com congelamento das despesas por 20 anos, levando-se em conta, a partir de 2017, o limite equivalente à despesa realizada em 2016, corrigida pela inflação observada nesse mesmo ano.

O discurso a respeito da austeridade se constrói como pano de fundo ancorado num arcabouço legislativo e institucional que lhe empresta sentido. Como componente de um posicionamento ideológico do receituário neoliberal que impõe a criação de um ambiente de negócios seguro e confiável, ele pode ser ativado ou desativado ao sabor da conjuntura econômica e política, quando interesses importantes são confrontados ou desatendidos em certa medida. A ideia de austeridade inviabiliza, por si só, o aprimoramento da capacidade arrecadatória do Estado para contínua expansão dos gastos produtivos e sociais, na medida em que o qualifica, de antemão, como ineficiente, interditando o poder público no

2 Exposição de motivos da PEC no 241/2016, transformada na Emenda Constitucional no 95/2016, em 16/12/16.

desempenho de seu papel de condutor do desenvolvimento, mas protegendo os interesses que se beneficiam com os serviços da dívida.

O “ornitorrinco” e a austeridade

A crise fiscal da década de 80 colocou em xeque o modelo de Estado desenvolvimentista, mas somente a partir dos governos de Cardoso (1995-2002) sua estrutura passou a ser desmontada de maneira paulatina. No discurso de posse do primeiro mandato fora firmado o compromisso com a desconstrução da “Era Vargas”, e a orientação neoliberal dominante da presidência de fato deu cabo de desmontá-la (Sallum Jr., 1999). O esforço foi empreendido no sentido de construir um novo pacto estrutural em que os interesses do mercado financeiro buscam acomodação junto aos demais eixos da economia na organização financeira do Estado. Tal é o signo do “ornitorrinco” (Oliveira, 2013 [2003]), correndo atrás de liquidez para garantir o pagamento do serviço da dívida pública enquanto busca encaixar no orçamento interesses das demais frações burguesas sem romper as regras de austeridade.

A figura pitoresca do reino animal serve como ilustração interessante dos dilemas da política brasileira contemporânea, especialmente se dermos atenção aos dados do desempenho econômico nacional. Tomemos como exemplo a comparação de alguns indicadores: no ano de 2014 houve o primeiro déficit dos resultados primários das contas públicas na série histórica (R$32,53 bilhões) e o PIB teve variação positiva de 0,5%. Em 2015, com aplicação de um ajuste fiscal, defendido devido ao déficit primário obtido anteriormente, houve piora do indicador fiscal (déficit de R$111,24 bilhões) e a variação do PIB foi negativa em 3,5%3. Os resultados de 2016 para frente não apresentaram mudança qualitativa, além do que as mudanças da Emenda Constitucional no 95/2016 tornaram a meta

3 Dados extraídos dos seguintes textos jornalísticos: MARTELLO, Alexandro. Contas do setor público têm primeiro déficit da história em 2014. G1, Brasília, 30/01/2015. Disponível em: <http://g1.globo.com/economia/noticia/2015/01/contas-do-setor-publico-te… 14.html>. Acesso em: 05/05/2021; PIB cresce 0,5% em 2014 chega a R$ 5,8 trilhões. Agência IBGE de notícias. Brasília, 17/11/2016. Disponível em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-age… sce-0-5-em-2014-chega-a-r-5-8-trilhoes>. Acessoem:05/05/2021;MARTELLO,Alexandro.Rombonascontas públicas soma R$ 111 bilhões em 2015, maior da história. G1, Brasília, 29/01/2016. Disponível em: <http://g1.globo.com/economia/noticia/2016/01/rombo-nas-contas-publicas-…- da-historia.html>. Acesso em: 05/05/2021; PIB cai 3,5% em 2015 e registra R$ 6 trilhões. Agência IBGE de notícias. Brasília, 09/11/2017. Disponível em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-age… i-3-5-em-2015-e-registra-r-6-trilhoes>. Acesso em: 05/05/2021.

fiscal obsoleta4. Ou seja, à primeira vista o aprofundamento da agenda de austeridade não apresentou resultados congruentes com seus postulados ideológicos.

Conforme enunciamos anteriormente, a meta fiscal não apresentava serventia como indicador econômico do desempenho da economia real, mas sim como termômetro político do compromisso do governo de ocasião com a austeridade fiscal. Servia como válvula de emergência, que poderia ser ativada ou desativada a depender dos interesses rentistas ao sabor da conjuntura, especialmente caso a rota tomada por algum governo começasse a desviar da baliza da ordem neoliberal. Esse arranjo nasceu de um endividamento externo colocado a serviço de uma reorientação do modo de acumulação para o eixo urbano-industrial e, contraditoriamente, criou bases que podem configurar um novo pacto estrutural de viés neoliberal. Nele o eixo da organização financeira do Estado se voltaria para garantir a acumulação financeira-rentista, possibilitando questionar se chegamos ao declínio da hegemonia urbano-industrial e estamos presenciando o início da predominância da estrutura financeira baseada no etéreo mecanismo de confiança do mercado.

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4 A partir do Novo Regime Fiscal, o limite dos gastos primários do governo central passou a ter o reajuste vinculado à variação da inflação somada à variação do PIB, quando positiva. Portanto, o regime de metas fiscais, apesar de não ter sido formalmente revogado, tornou-se obsoleto, já que sua razão de ser era calcular a poupança de gastos primários ao longo do exercício fiscal, algo que não faz mais sentido, já que os gastos públicos estão contingenciados de antemão por uma regra constitucional.

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