A crise do lulismo: vestígios da autocracia burguesa?

Por Gabriel Nunes de Oliveira, mestrando em Ciência Política pela USP e membro do Grupo Pensamento e Política no Brasil, associado ao CENEDIC.

            O golpe parlamentar contra a então presidenta Dilma Rousseff ocorrido em 2016 trouxe à baila, agora em nova ocasião, questões fundamentais sobre a estrutura de classes e a forma de reprodução do capitalismo brasileiro. Após cerca de doze anos de avanços sociais significativos, com diminuição da pobreza, integração de parcela do subproletariado, formalização do trabalho e expansão do salário mínimo, o Brasil se via diante de novo truncamento[1] e rápida regressão das conquistas anteriores. O ornitorrinco dava as caras como a evolução truncada que é: não se encontra no subdesenvolvimento, o que impossibilita desfrutar das brechas da Segunda Revolução Industrial; ao mesmo tempo, não é capaz de avançar no sentido da acumulação tecnológica e científica, devido à insuficiência da base interna de acumulação – restando-lhe apenas as “acumulações primitivas” (OLIVEIRA, 2003). Tal como em 1964, o impeachment de Rousseff não se trataria de mero fenômeno de conjuntura, pelo contrário, reflete ponto nevrálgico de nossa formação social. A diferença, diria ainda Chico de Oliveira, está no fato de que, no século XXI, atropelada pela “revolução molecular-digital”, a sociedade brasileira perdera a possibilidade de escolha.

            O truncamento também revelava as limitações da democracia brasileira. Em sua análise do período 2011-2016, André Singer (2018) assinala que Dilma, ao ensaiar uma virada desenvolvimentista da economia, com base em uma coalizão produtivista, teve contra si a feroz oposição de uma frente única burguesa antidesenvolvimentista, liderada pelo capital financeiro ao qual se uniram os empresários industriais – até então viga de sustentação do experimento desenvolvimentista e a quem se destinava grande parte das medidas da Nova Matriz Econômica. Nesse sentido, o deslocamento político da burguesia industrial brasileira em direção à coalizão rentista, na visão de Singer (2018), teria sido um dos elementos fundamentais para a derrubada da então presidenta. Tal comportamento, paradoxal na aparência, poderia ser explicado, segue o cientista político, pela intensificação do conflito de classes – em decorrência da valorização salarial e da explosão do número de greves –, pela forte influência ideológica do capital financeiro sobre o empresariado industrial, pela reação dos industriais contra a escolha reiterada dos governos lulistas pelas relações Sul-Sul no âmbito internacional, ou, ainda, pela existência de elemento rentista na burguesia industrial, o que tornaria, desde o princípio, a coalizão produtivista bastante frágil.

            Por detrás de tais hipóteses, há uma formulação teórica mais geral. A partir de Oliveira (2003), Singer (2018) argumenta que é vital à acumulação capitalista brasileira a existência de uma massa de mão-de-obra excedente e superempobrecida, alijada dos centros dinâmicos da economia e aquém da condição proletária. Esse vasto contingente de trabalhadores, o subproletariado, porque rebaixa o valor geral da força de trabalho, é responsável por assegurar as altas taxas de exploração que tornam possível o capitalismo em um país periférico e de extração colonial como o Brasil. Desta feita, o lulismo, malgrado seu caráter conciliatório e desmobilizador (SINGER, 2012), tem conteúdo ameaçador para a reprodução social do capitalismo no país, uma vez que promove a integração do subproletariado, reduzindo a grande massa de mão-de-obra excedente. O governo Dilma, ao optar por acelerar o lulismo, aproximando-o de um reformismo forte, mas igualmente desmobilizador, tornou-se insustentável para o capital, ainda mais se considerarmos que a presidenta garantiu a situação de pleno emprego até o final de 2014. Isto é, involuntariamente, a execução do programa político do subproletariado teria tocado no nervo mesmo de nossa formação social, mobilizando contra si forte reação burguesa – numa “contrarrevolução sem revolução”, dirá Singer. Mesmo um programa bastante distante de quaisquer intenções anticapitalistas, no Brasil, é percebido como intimidador pelas classes dominantes, as quais não hesitam em arrastar consigo a democracia. Para Singer (2018), a consolidação das medidas propostas por Dilma, em direção ao reformismo forte, dependeria de ampla mobilização popular.

            Em momento bastante distinto, Florestan Fernandes também se via às voltas com o capitalismo brasileiro e sua relação com a democracia. Na grande obra A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica, Fernandes (2020) assinala que, devido às características peculiares do capitalismo no Brasil, a dominação burguesa no país assumiu a forma de uma autocracia burguesa, resultando em um regime de classes fechado, bastante distinto daquele existente em países de “via clássica”, como Estados Unidos, França e Inglaterra. A autocracia burguesa, cujo caráter foi pela primeira vez escancarado no golpe militar de 1964, nesse sentido, não diz respeito a uma forma institucional específica de regime político, mas a um princípio ordenador mais amplo – e essencialmente antidemocrático – do poder político e social, do Estado e, sobretudo, da cidadania no país – que garante à burguesia, e a algumas poucas camadas extraburguesas, o controle da maior parte da riqueza produzida e a única participação legítima no espaço político, numa espécie de “circuito fechado”, de regime de autoprivilegiamento de classe, cujo resultado, para a vasta maioria da população, é a interdição aos avanços trazidos pela modernização capitalista e a permanência estrutural na pobreza e no “atraso”. Logo, seguindo o argumento de Fernandes (2020), não haveria qualquer oposição entre autocracia e instituições políticas de feitio democrático, uma vez que, não ocorrendo rompimento estrutural com a autocracia burguesa e sua ordem de privilégios, ter-se-ia tão somente uma espécie de “normalização” autocrática no interior dos termos jurídicos e representativos do Estado, cooptando e neutralizando a oposição. Escrevendo no ano de 1974, às vésperas do início do processo de distensão política da ditadura, Fernandes afirma:

No conjunto, o “avanço democrático” de tais esforços de distensão política apenas repõe o problema político da hegemonia burguesa, agora em termos de um novo contexto histórico e sob a impetuosa necessidade de criar os vínculos orgânicos que deverão entrelaçar os mecanismos da democracia de cooptação com a organização e o funcionamento do Estado autocrático.

Pode-se concluir, pois, que está em curso uma dupla “abertura”. Ela não leva à democracia burguesa, mas à consolidação da autocracia burguesa: 1º) por pretender ampliar e consolidar a democracia de consolidação, abrindo-a “para baixo” e para a dissidência esterilizada e esterilizável; 2º) por querer definir o alcance do poder legítimo excedente, que deve ser conferido constitucional e legalmente ao Estado autocrático (FERNANDES, 2020, p. 443).

           

Por sua gênese colonial e escravista, o capitalismo que se dá no Brasil, segundo Fernandes (2020), é “difícil e selvagem”, uma vez que, aqui, ocorre uma apropriação dual do excedente econômico: a partir de dentro, pela burguesia pátria, e a partir de fora, pelas burguesias do centro hegemônico. Tem-se, assim, uma burguesia que já nasce débil, dispersa e heteronômica – uma vez que dependente do capital externo para a modernização e transformação capitalistas – e um padrão imperializado de desenvolvimento capitalista, marcado pela dupla articulação dependência externa-desigualdade interna, em uma sociedade altamente explorada e com vasto contingente de pobres.

A dominação burguesa que tal padrão capitalista requer, destarte, em nada se parece com aquela que se dá nos países da “via clássica”. O padrão ultraexploratório do país, com grandes desigualdades e reduzida redistribuição de renda, torna a hegemonia burguesa bastante difícil, havendo pouca, ou nenhuma, margem para acomodação ou abertura às demandas dos “de baixo”. A viabilidade do capitalismo dependente e subdesenvolvido, nesse sentido, para Fernandes (2020), é resolvida por meios políticos e no terreno político. Isto é, não havendo a universalização dos interesses e valores burgueses como nos casos clássicos – nos quais, por conta disso, o domínio econômico, ideológico e social da burguesia é bastante forte –, a burguesia brasileira depende fundamentalmente da criação, consolidação e preservação de estruturas de poder predominantemente políticas, cujo controle repousa exclusivamente em mãos burguesas. Tem-se, assim, a constituição de um Estado autocrático, restrito à burguesia, e pronto para atuar em sua defesa fronte a qualquer ameaça – ou ilusão de ameaça – vinda das massas, ou mesmo de um certo radicalismo burguês, ainda que esteja “dentro da ordem” capitalista. Não existe, então, possibilidade de que a burguesia dê abertura à democratização política, econômica e social que existe nas democracias burguesas-liberais clássicas, sob ameaça de sua própria hegemonia e do próprio capitalismo no país. Na revolução burguesa que aqui se processou, dirá Fernandes (2020), dissociou-se o avanço econômico trazido pela transformação capitalista dos avanços políticos: há a reiteração autocrática da “democracia” restrita ao mesmo tempo em que se verifica intenso avanço tecnológico e industrial nos centros dinâmicos do país.

Percebe-se que, malgrado sua heteronomia e debilidade em relação ao capitalismo do centro, a burguesia brasileira possui grande força e margem de manobra internamente, constituindo um regime de autoprivilegiamento ostensivo e sustentado na violência – muitas vezes feroz – e na prontidão para ações contrarrevolucionárias; uma ordem social competitiva, nas palavras de Fernandes (2020), restrita e pouco flexível, cuja legitimidade repousa não na abertura ao conflito “dentro da ordem” entre as diferentes camadas sociais – como nos casos “clássicos” –, mas na concentração mesma de poder nas classes burguesas. No limite, a argumentação de Fernandes (2020) conduz à conclusão de que o capitalismo à brasileira não se sustenta sem a autocracia, ou seja, sua acumulação e reprodução ampliada depende da manutenção de um regime altamente excludente e autocentrado na classe burguesa.

Seguindo a tônica da interpretação de Fernandes, com todas as ressalvas que tal transposição demanda, poderia o lulismo ser compreendido como uma nova organização política, eleitoral e institucional da autocracia burguesa? A inclusão da massa subproletária em programas de transferência de renda e outros programas sociais, oferecendo-lhes condições para melhoria nas condições materiais, além da participação direta no Estado de quadros dos movimentos sociais e sindicais, como a CUT e o MST, teria conferido renovada legitimidade ao regime de dominação burguesa brasileiro. Todavia, a abertura aos subalternos teria sido “esterilizada e esterilizável”, tendo em vista o caráter desmobilizador, conciliador e, de certo modo, conservador do lulismo (SINGER, 2012, 2018). Isto é, em outras palavras, o fenômeno lulista funcionara, no limite, como conservação do status quo autocrático burguês. A manutenção do tripé macroeconômico de Fernando Henrique Cardoso, o reduzido avanço no processo de reforma agrária e de outros projetos históricos da esquerda, como taxação de grandes fortunas e tributação de lucros e dividendos, e a adesão das principais centrais sindicais ao governismo poderiam ser consideradas evidências[2] de tal processo.

O avanço da condição proletária da massa de pobres e o fortalecimento de greves e reivindicações salariais, sobretudo durante o primeiro governo Dilma Rousseff, em decorrência da situação de pleno emprego, teriam representado grande ameaça – ou ilusão de ameaça, haja vista que nada continham de anticapitalismo – à dominação burguesa. Isto é, o lulismo teria “saído de controle”, uma vez que a “abertura” para os subalternos estaria superando o limite do “esterilizado e esterilizável”, tendo como pronta resposta a ferocidade da burguesia e de seus instrumentos contrarrevolucionários. Novamente, a autocracia burguesa mostraria sua real face. Aparentemente extirpada da sociedade brasileira com a redemocratização da década de 1980, a autocracia burguesa, em realidade, esteve sempre à sombra. Nesse ponto, a argumentação de Singer (2018) e de Fernandes (2020) se mostram bastante próximas: apesar de pontos de partida relativamente distintos, Singer e Fernandes teriam alcançado conclusões relativamente próximas. No capitalismo à brasileira, qualquer projeto voltado aos subalternos tende a ser prontamente barrado pela burguesia, sob ameaça da dominação autocrática e, consequentemente, do próprio regime capitalista.

Não se pretendeu, neste breve exercício de leitura, aderir a tal ou qual interpretação sobre o Brasil, mas tão somente trazer à tona um debate que pode auxiliar na compreensão dos rumos que o país tem tomado nos últimos anos. Tampouco fez-se aqui alguma relativização do processo de redemocratização e da importância da Constituição de 1988, sobretudo num contexto como o presente, em que o regime democrático sofre ataques reiteradamente. Contudo, acredito que a obra de Florestan é de grande potência e oferece grande contribuição para pensar o país e, por que não, também os rumos do capitalismo mundial, haja vista que, com o avanço do neoliberalismo e do capital financeiro, os países do centro passaram a experimentar[3] o que, até então, era exclusivo dos países da periferia, como o ornitorrinco brasileiro: a exceção como regra.

Referências bibliográficas

FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. 6ª edição. Curitiba: Kotter Editorial; São Paulo: Contracorrente, 2020

SINGER, André. Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

SINGER, André. O lulismo em crise: um quebra-cabeças do período Dilma (2011-2016). São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista / O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003.

 

[1] A ideia de novo truncamento tem sido discutida no âmbito do atual projeto de pesquisa do CENEDIC.

[2] Francisco de Oliveira, no ensaio Hegemonia às avessas de 2007, apresenta argumentação bastante semelhante. Para o sociólogo, apesar da aparência de os subalternos dominarem, uma vez que no controle do Estado, em realidade, o que se vê é a manutenção da hegemonia neoliberal de maneira inovadora, agora pelas mãos dos próprios dominados.

[3] Ver, neste mesmo fórum, o texto Uma análise desde o Sul Global sobre a tentativa de golpe nos EUA, de Hugo Fanton